Punir ou não punir: o dilema da semi-imputabilidade



Por Iuris Trivium

A teoria do delito se configura como a grande chave interpretativa para determinar se uma conduta humana é ou não entendida como crime. E para que uma ação seja assim considerada, é preciso que sejam vislumbrados nela três requisitos: a tipicidade, a antijuridicidade e a culpabilidade.

E esses pressupostos são analisados de maneira estratificada, sendo ponderados progressivamente. Ao se deparar com determinada conduta, o jurista inicialmente verifica se ela está tipificada como delito no ordenamento.Em seguida, observa se a conduta praticada está em descompasso com o direito, sendo este o requisito da antijuridicidade; é nessa hora que são pensadas as excludentes da ilicitude, como a legítima defesa ou o estado de necessidade, por exemplo.
E se o binômio inicial de tipicidade e antijuridicidade restar preenchido, o eixo de análise passa então para a culpabilidade, que é possivelmente o requisito mais complexo, e que gera os mais acalorados debates doutrinários e jurisprudenciais.
A culpabilidade, como sabemos, é, além de princípio e instituto limitador da pena, elemento do delito.
De maneira que, para a própria afirmação da existência do crime é necessário que, o (a) agente da conduta considerada ilícita, seja passível de reprovação pelo sistema penal. Daí autores como Paulo César Busato e Vives Antón, tratarem, de acordo com a Teoria Significativa da Ação, a culpabilidade como “pretensão de reprovação”.
Em poucas palavras, trata-se de reprovar juridicamente o (a) autor (a) do fato que, tendo a possibilidade de agir conforme o direito, opta por agir de maneira contrária a este.

Pois bem.
A imputabilidade, que é o que nos interessa neste primeiro momento, faz parte da culpabilidade como elemento de delito e diz respeito a atribuir responsabilidade a alguém por alguma conduta socialmente reprovada e, por isso, caracterizada como crime ou contravenção penal, ou seja, é a possibilidade de se estabelecer um nexo causal entre o (a) agente e a conduta por este (a) praticada.
Os critérios para definir a imputabilidade são vários, e vão desde dados biológicos como a idade – requisito objetivo –, até conceitos psíquicos, que tentam compreender se à época do fato o (a) autor (a) era capaz de se autodeterminar.
Em nosso Código Penal, o critério biológico é definido pela menoridade, e o requisito psicológico é disciplinado pelo desenvolvimento mental completo ou retardado. Daí que se extrai que o critério brasileiro de imputabilidade é o biopsicológico.
E a inimputabilidade, como sabemos, é tema suficientemente polêmico. Não são raras as vezes em que esbarramos em pessoas de caráter mais punitivista queixando-se do nosso sistema criminal e, principalmente, da maioridade penal.
Por influência da mídia e por puro sensacionalismo, estes, erroneamente, entendem ser a inimputabilidade penal sinônimo de impunidade. Bradam a redução da maioridade penal, acreditando que isto resolveria a situação da criminalidade.

Enfim, voltemos.
São os art. 26 e 27 do Código Penal que cuidam do instituto jurídico da inimputabilidade, ao dispor:
Art. 26. É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. Art. 27. Os menores de 18 (dezoito) anos são penalmente inimputáveis, ficando sujeitos às normas estabelecidas na legislação especial.
O que estes dispositivos querem dizer é que somente pode ser reprovada a conduta de alguém que seja inteiramente capaz de compreender o que está fazendo e de orientar sua conduta de acordo com esse entendimento.

Até aí tudo bem.
O problema encontra-se no parágrafo único do supracitado art. 26, que dispõe:
Parágrafo único - A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.
A isto, a doutrina convencionou chamar de “semi-imputabilidade”, que ocorre quando o (a) agente não é inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou inteiramente capaz de orientar-se de acordo com este entendimento.
Ou seja, o Código Penal imputa responsabilidade penal no (a) agente, por acreditar que este compreende, mais ou menos, aquilo que está fazendo. Isto não soa estranho? Ora, ou compreende-se o que se faz, ou não. Ou o sujeito é imputável, passível de reprovação, ou não. Não parece haver um meio termo.

E a maneira pela qual este “meio termo” é auferido, é ainda mais problemática. Vez que o critério é essencialmente psíquico, os magistrados não possuem competência técnica para determiná-lo, vendo-se amarrados a pareceres e laudos médicos produzidos por peritos, que acabam se tornando verdadeiros juízes paralelos – aqueles tão temidos por Foucault – e se apresentando como instâncias de julgamento anexas.
Nesse sentido, o que se percebe é que a semi-imputabilidade traz fissuras ao critério da culpabilidade, tão caro ao direito penal, ao relativizar algo que deveria ser absoluto: ou o sujeito é responsável por uma conduta delitiva, ou não.
Nas palavras do Professor Paulo César Busato, o que existe, em verdade, é a incapacidade dos Tribunais de demonstrarem a imputabilidade.

Assinam este texto: Mariana Valentim e Matheus Gugelmin



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