Povo de luta

Eles estão nas favelas, aldeias, quilombos, roças, florestas. São lideranças comunitárias, agentes pastorais, professoras, advogados, indígenas, quilombolas: o que une o povo de luta, como eles se auto-identificam, é a resistência coletiva, a afirmação vigorosa da existência ameaçada sob os olhos vendados do Estado. Quanto mais longe estão dos centros de poder, maior o risco de terem suas vidas apagadas. Os conflitos no campo, por exemplo, nem aparecem nas estatísticas oficiais. Não fosse o levantamento feito há décadas por organizações de defensores de direitos, como o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e a Comissão Pastoral da Terra (CPT), vítimas e responsáveis pela violência no campo se diluiriam entre números de mortes violentas, assim como as razões que lhes tiraram as vidas. Essa é a mola propulsora do Mapa de Conflitos, uma parceria da Agência Pública com a CPT. A ferramenta, criada pela equipe liderada pelo editor Thiago Domenici, permite cruzar os dados de uma década de conflitos (2011-2020) com dados socioambientais - desmatamento e incêndio, por exemplo - de todos os municípios onde as violências aconteceram, ajudando a compreender o que está acontecendo na Amazônia. Lançado em abril de 2022, o Mapa está entre os finalistas do Sigma Awards deste ano. Na década analisada, foram mais de 100 mil famílias afetadas por 7.818 conflitos com 2.397 vítimas de ameaça, assassinato ou tentativa de assassinato, a maioria delas indígenas, posseiros, quilombolas, sem-terra, assentados e ribeirinhos. Os conflitos foram deflagrados especialmente por fazendeiros, empresários, grileiros, por agentes do governo federal e também mineradoras internacionais e garimpeiros. São números impactantes, ainda mais quando se cruza com outros dados, mostrando a relação entre mortes no campo e desmatamento, por exemplo. O Maranhão, estado que concentrou o maior número de focos de incêndio na última década, também é recordista em assassinatos de defensores de direitos humanos nesse período, o que contribuiu para o acirramento da violência contra indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais no governo Bolsonaro: em 2021, o estado foi recordista em assassinatos no campo, com nove vítimas, cinco delas quilombolas. O surto de violência também atingiu os Guajajara, no sul do estado - nesses dois meses de 2023, quatro indígenas foram assassinados e dois adolescentes baleados. É por isso que escrevo esta news de São Luís do Maranhão, onde chegamos na terça-feira para fazer uma reportagem sobre a violência contra os defensores de direitos humanos: o povo de luta. Nesta semana, eles acamparam na frente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) da capital maranhense, com suas redes coloridas sob as tendas. O lugar exala não apenas o cheiro gostoso do azeite de babaçu mas uma determinação que se revela não só nas manifestações diante dos órgãos públicos, mas ali, entre eles, crescendo nos batuques de tambores de troncos dos quilombos, na indignação poderosa das quebradeiras de coco, na dança elegante de jovens indígenas e negros, na dedicação incansável de advogados e agentes do Cimi e da CPT. É nesse território que recolhemos as denúncias que vamos investigar, matéria-prima de nosso trabalho, mas também a força para continuar, como percebi nesses dias em São Luís. As injustiças são antigas, a impunidade quase eterna, mas quando se está junto do povo de luta, nenhum esforço é fútil, nenhuma esperança é vã. A gente se contagia de fé e, apesar de tanta dor, o futuro parece logo ali.
Um bom fim de semana para vocês,
Marina Amaral
Diretora executiva da Agência Pública



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